por Elaine Tavares - jornalista
02 de Junho de 2005
Já se estende por mais de duas semanas a onda de
protestos que vem incendiando a Bolívia desde o dia em que o presidente Carlos
Mesa decidiu aprovar a Lei dos Hidrocarburos sem contemplar a reivindicação dos
movimentos de camponeses e trabalhadores do país.
Os grupos organizados querem que a exploração do gás
seja nacionalizada e que as populações originárias tenham o direito de domínio
sobre seus territórios.
Este já é o segundo levante significativo dentro do
governo Mesa e é bom lembrar que foi o povo em rebelião quem permitiu que o
atual presidente governasse, uma vez que Sànchez de Lozada, o presidente eleito
e do qual Mesa era vice, foi deposto pela mesma gente, em outro levante em
2004. O que é a Bolívia
Para entender todo o processo que hoje vive a Bolívia é
preciso fazer um breve retorno na história, contextualizando estes fatos que
aparecem na mídia como "mais uma rebelião". Não é bem assim. A
história dos povos que constituem a Bolívia é cheia de beleza e pontuada por
grandes lutas que visam manter sua cultura e sua soberania.
O território que atualmente compõe o país foi
constituído em 6 de agosto de 1825 nas chamadas guerras de libertação do Alto
Peru e levou esse nome em homenagem a Simón Bolívar, um dos mais importantes
líderes desse movimento. Antes disso, o espaço geográfico boliviano foi, por
300 anos, parte da grande extensão da colônia espanhola.
Mas, ocorre que quando os espanhóis ocuparam as terras
do que hoje é a América do Sul, elas já eram desde há muito habitadas. A região
da Bolívia, por exemplo, era o espaço de vida de importantes culturas
autóctones tais como a Viscachanense, a Ayampitinense, a Chiripa, a Wancarani,
a dos Urus e particularmente a Tiwanacota, caracterizada como o primeiro
Império Andino, florescido bem antes dos Incas e em cujos domínios se construiu
a primeira cidade planejada da região: Tiwanacu.
Não é á toa que, apesar de todo o processo de destruição
levado pelos espanhóis, esses grupos culturais sobreviveram e hoje (agrupados
em duas grandes nações: a Aymara e a Quéchua) se constituem como maioria no
país perfazendo mais de 68% da população.
Foi em 1544 que a grande tragédia dos povos que ocupavam
o território da hoje Bolívia teve seu auge. Era descoberto pelos espanhóis o
cerro de Potosí, lugar de onde seria retirada toda a prata e muito da vida
daquela gente, então escravizada pelos invasores. Desde esse tempo, as
populações autóctones lutam para recuperar a sua liberdade e sua soberania.
Nunca, em tempo algum, os espanhóis governaram em paz.
As sublevações eram freqüentes e nem a igreja conseguiu
quebrar a santa rebeldia do povo do lugar. Mesmo aceitando - sob coação - a fé
cristã, as pessoas iam sincretizando e guardando, nos chamados "festejos
folclóricos", a essência de suas crenças e de sua cultura. E foi esse
espírito guerreiro que fez com que, quando explodissem as lutas de
independência, a gente da região da Bolívia entrasse de cabeça e fizesse acontecer
a quebra dos grilhões que a prendiam à Espanha. A liberdade sempre foi
perseguida com força e determinação. Inumeráveis foram os levantes dos povos
autóctones durante o tempo de dominação.
Já em 1809, um levante em La Paz - quando o povo invadiu
a intendência e botou para correr o representante espanhol - colocava fogo
naquele que seria o estopim da libertação. Logo em seguida, liderados por
comandantes autóctones (tais como Cáceres e Pumacahua), se ergueram Potosi e
outras cidades importantes. Finalmente em 1824, a partir da batalha vitoriosa
de Simón Bolívar, o Alto Peru estava livre do jugo espanhol e vários países
foram criados, entre eles a Bolívia.
Sem Espanha, mas com o
latifúndio
A alegria pela libertação da Espanha não durou muito
para as gentes da região da Bolívia. Tão logo o chamado Alto Peru foi sendo
fatiado em países, as lutas internas pelo poder iniciaram e envolveram outra
vez as comunidades. Não foram poucas as lutas e muitos os mortos. Ao final,
venceram os latifundiários, os coronéis, os caudilhos, que, aos poucos, foram
tomando conta do mando e jogando as populações autóctones outra vez para a
miséria. A promessa de um tempo de liberdade não se cumpriu.
Durante todo esse período as comunidades mantiveram
acesos a luta e o desejo de serem soberanas em seu espaço de vida. Mas, nunca
foi fácil. O latifúndio seguiu impondo sua pauta apesar das inúmeras
sublevações, e o início do século XX foi marcado pelo período de mando militar.
É certo que muitos deles tinham um caráter nacionalista/popular e eram
inclusive apoiados pelo povo, mesmo assim, até os mais bem intencionados não
conseguiram dar conta das demandas exigidas pela população.
Na Bolívia, houve períodos de repressão em que até as
músicas e folguedos autóctones eram proibidos, mantendo-se assim a até os anos
70. Havia todo um desejo de se apagar da memória a cultura e o passado
guerreiros de toda aquela gente. Só que essas ordens nunca foram seguidas. No
segredo, nas revoltas e nas sincretizações eles mantiveram sua história e seu
sonho de liberdade.
Foi no ano de 1951 que a Bolívia viveu seu período mais
bonito. Depois de anos sob as botas militares e várias revoltas populares, as
gentes elegeram Victor Paz Estessoro, com uma plataforma altamente libertadora
para aqueles tempos. Os militares tentaram impedir o novo governo, mas os
bolivianos foram para as ruas em uma revolta histórica, com mineiros e
camponeses armados, e conseguiram manter Estenssoro. No cargo até 1964 ele fez
reformas importantes, nacionalizou as mineradoras, garantiu direitos aos povos
autóctones, criou organizações trabalhistas e instituiu o voto universal.
Em 1964, tal e qual no Brasil, a Bolívia mergulhou outra
vez na lógica dos governos militares, bem dentro da idéia de freamento das
lutas e conquistas populares, imposta pelos Estados Unidos. Era um tempo em que
os governos de caráter mais progressivo precisavam ser cortados pela raiz. O
governo de René Barrientos, o mesmo que matou Che Guevara, apesar de apoiado
pela maioria do povo, foi quem garantiu o desmonte da organização popular mais
radical que estava em ritmo de crescimento.
Depois, a Bolívia passou por tempos críticos como os do
governo de Hugo Bánzer, quando o país viveu quatro anos em estado de sítio.
Tudo porque as gentes não se deixavam vencer por governos de força. Trancar as
estradas com pedras e fazer gigantescas marchas fez e faz parte da resistência
atávica do povo boliviano.
Em 1985 Paz Estenssoro volta ao poder e as esperanças se
renovam. Mas, seu terceiro governo - que vai até 1989 - principia a pender para
a lógica neoliberal que começa a apontar na América Latina e não avança na
discussão de um poder popular e democrático. Seu ministro de planejamento era
Sànchez de Lozada, que viria a ser presidente em 93.
Jaime Paz Zamora - que o sucede depois de uma espécie de
"acordão" entre as forças políticas de direita e centro-esquerda -
apesar de ter feito parte de vários processos de desmonte do então governo
militar, acaba pendendo para a lógica social-democrata e não consegue avançar
nas promessas de melhorias para o povo boliviano.
No ano de 1993 é a vez de assumir o comando do país um
homem que sequer sabia falar a sua língua. Sànchez de Lozada, educado nos
Estados Unidos, assume a presidência e durante os quatro anos que governa só
consegue aprofundar o abismo entre pobres e ricos.
Em 1997 o poder volta para as mãos de Hugo Banzer que
não chega a terminar o mandato em função de sua morte. Em 2003, numa disputa
com Evo Morales, da comunidade aymara e do Movimento ao Socialismo, Sànchez de
Lozada vence as eleições, embora pouco esquente a cadeira. Em mais uma das
revoltas promovidas pelo povo - desta vez por conta da nacionalização do gás e
da soberania das comunidades autóctones - Lozada é deposto assumindo então, o
seu vice, o jornalista Carlos Mesa.
O conflito hoje
Como se pode perceber, a queda de braço entre
governantes e população não é de hoje na Bolívia. A história mostra que o povo
não mede esforços para fazer valer aquilo que pensa ser melhor para si. Desde
1825, quando se libertou da Espanha, o país já passou por quase 200 golpes de
estado ou deposições de presidente.
Sua política é marcada por levantes populares violentos
e decisivos. Os povos autóctones, os camponeses, os trabalhadores urbanos e os
estudantes param o país, trancam as ruas e estradas, invadem palácios,
enfrentam fuzis. O mistério que fica insolúvel se resume na pergunta: por que,
com tanta força de mobilização, o povo da Bolívia não toma o poder?
A guerra pela nacionalização do gás e o controle do
petróleo ficou mais forte no segundo mandado de Goni - Lozada. Como o setor
estava praticamente entregue nas mãos dos estrangeiros, a população decidiu que
ou o presidente tomava as rédeas do país ou saia. Goni não resistiu e em 2004
foi deposto depois de vários dias de rebelião nas ruas. Em nome da
"constitucionalidade", as gentes decidiram deixar que o vice
assumisse o cargo com a promessa de que iria rever a lei do gás.
Há duas semanas, pressionado pelas multinacionais, pelos
Estados Unidos e até pelo Brasil - que tem interesses pesados no país - Mesa
aprovou a lei que vai de encontro aos interesses da população. Dramaticamente,
o presidente foi à televisão se justificar dizendo que "as multinacionais
mandam no país. Não podemos aprovar uma lei que lhes desagrade". Dava um
recado simples: ou o povo aceitava perder um pouco ou tinha que se ver com os
deputados que eram mais reacionários do que ele, Mesa.
A nova lei aumenta os impostos pagos pelas empresas, mas
não atende a reivindicação de que elas deveriam pagar 50% de royalties pelo gás
e pelo petróleo, e muito menos nacionaliza o setor. Com isso, Mesa atiçou os
movimentos populares mais importantes hoje na Bolívia que são o MAS (Movimiento
al Socialismo), a COB (Central Obrera Boliviana) e a comunidade de El Alto.
Nestes dias, mineiros, camponeses, professores
universitários, gente de El Alto, enfim, a Bolívia inteira está de pé e pede a
renúncia de Mesa. Agora ninguém mais quer saber dos royalties de 50%. Os gritos
de ouvem são: "ni 30, ni 50. Nacionalización!". A paciência com as
multinacionais chegou ao fim.
As divergências
Mas, apesar de as palavras de ordem serem de mudanças
radicais, entre as organizações populares há muita divergência sobre o destino
da rebelião. Há os que acreditam que Mesa pode seguir governando se tomar a
atitude de nacionalizar o petróleo e o gás, ou quem sabe antecipar as eleições
para que tudo siga na normalidade constitucional, e os que querem todo poder ao
povo.
Lideranças como Evo Morales já estão sendo consideradas
conciliatórias demais - porque defendia a continuidade de Mesa no poder - e já
se percebe uma mudança no seu discurso por causa da força das gentes nas ruas.
Os militantes do MAS em caminhada pelas estradas da Bolívia exigiram um posição
mais dura.
A comunidade de El Alto é a mais radical, quer a
expulsão das multinacionais, dos deputados, do presidente e a instalação de
assembléias populares para organizar a tomada do poder. Evo Morales pede uma
Assembléia Nacional Constituinte e os demais querem um Assembléia Popular no
rumo do "que se vayan todos". Esse parece ser o grande embate hoje na
Bolívia.
Há uma clara divisão entre duas forças: o governo, a
elite, o parlamento e as multinacionais de um lado, e o povo pobre e
trabalhador de outro, embora este esteja dividido no conceito de fim. Essa
divisão pode, mais uma vez, levar a vitória da elite que, nessas horas, acaba
ficando unida.
A idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte parece
ser a saída para os donos do poder, daí a revolta com a posição de Evo Morales.
Segundo analistas bolivianos, nos jornais locais, essa proposta foi bem aceita
por órgãos muito suspeitos como o Banco Mundial. Lógico. Se o povo boliviano
aceitar essa armadilha, a vida volta ao normal e as forças políticas a serviço
do capital têm todo tempo do mundo para se re-organizar e vencer as eleições.
Tudo muda para continuar como está. Para se ter idéia de
como o poder se organiza, os Estados Unidos, através da USAID, estabeleceu o
que chamam de Iniciativas de Transição na Bolívia e já investiram mais de
quatro milhões de dólares nessas "trampas", inclusive tentando
subornar lideranças da comunidade de El Alto, a mais radical nesse processo.
A sorte está lançada. Nas mãos do povo boliviano está o seu
destino. Optar por uma Assembléia Popular, construída de forma libertária em
cada comunidade do país pressupõe uma outra forma de poder, popular de verdade,
vinda "desde abajo".
Seria o povo verdadeiramente no poder, os camponeses, as
comunidades autóctones, os trabalhadores das minas, das cidades, os
professores, enfim, aqueles que vêm resistindo desde há 200 anos, promovendo
revoltas, rebeliões, revoluções e sempre cedendo ao poder instituído, às
elites. Talvez esteja na hora de experimentar tomar conta do mando.
Quem sabe, numa construção local, que tenha a verdadeira
cara da Bolívia, não seja possível construir formas novas de praticar o poder,
coletiva, solidária, numa outra órbita cultural. Está mais do que na hora das
gentes da Bolívia não voltarem das portas do palácio deixando-o para os de
sempre. É hora de entrar e ocupar as salas, reformando toda o cenário e
conduzindo o país para novos rumos.
Para que isso aconteça interesses terão de ser
contrariados, mas isso faz parte do processo. Tal como acontece hoje na
Venezuela, as elites bolivianas também não cederão tão fácil, com medo de
perderem o osso para o que chamam de "bando de índios". Para isso já
estão na contra-ofensiva organizando os chamados Comitês Cívicos em defesa do "estado
das coisas e da propriedade".
O número de pessoas que tem aderido a esses chamados da
direita não é pouco. Sempre há os que acreditam que melhor do que a liberdade é
ficar protegido sob a asa de algum graúdo. De qualquer forma, os próximos dias
deverão definir o destino da Bolívia. O povo unido já mostrou a força que têm e
esta não é a primeira vez. Resta saber se essas força vai ser canalizada para a
construção de um país livre, soberano, de democracia radical sob o controle dos
trabalhadores e camponeses. A hora histórica é agora.